quinta-feira, março 13, 2014

7 meses após desativação, IPPS guarda lembranças encarceradas

É a primeira ou a última impressão a que fica? A melhor, respondem os sábios. E quando não há impressões positivas, resta o quê? Foi com essa angústia que saí da última visita feita ao Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), há dois dias. A primeira, que completa 20 anos próximo sábado, terminou com o sequestro do então arcebispo de Fortaleza, Dom Aloísio Lorscheider.
Junto com outras 12 pessoas ligadas aos direitos humanos e à imprensa, ele foi feito refém após um motim com repercussão internacional. Eu estava entre os reféns. Durante estas duas décadas, voltei ao presídio umas três vezes. Na mais recente - a equipe do Diário do Nordeste foi a primeira da imprensa local a entrar no presídio após a sua desativação no ano passado - também ficou explícita a ocorrência de muitos outros sequestros por ali. A maioria deles, porém, menos eloquentes para o mundo: o da a subjetividade dos presidiários.
Álbuns de família, quadros, roupas, objetos de higiene pessoal, bíblias, cadernos, livros, lembrancinhas feitas por crianças, flores, bonés, tênis, sandálias, tudo, enfim, que de alguma maneira os individualizava num sistema onde as pessoas constam como números.


Se antes, no IPPS, o medo reinava nos corredores, celas e até na muralha gigantesca, hoje, o predomínio é a desarrumação. Ela foi fruto das revistas feitas pelos policiais após a transferência apressada dos 290 últimos detentos, no dia 15 de agosto do ano passado. Temia-se a possibilidade de tumulto ou rebelião. Passados sete meses, porém, continua tudo fora de lugar. Há ainda grades nas celas, mas os cadeados estão trancados em outras, portões emperrados, objetos e documentos entulhados no chão, alimentos e bebidas nas prateleiras e a maioria dos colchões espalhados nos corredores. Os lençóis improvisam cortinas nas celas, restos de material artesanal enfileiram-se como se esperassem a volta de quem os utilizava.
Não há retorno. Há perguntas, porém. Ora, qual seria a razão de a sociedade se preocupar se o criminoso, enquanto cumpre a sua pena, perde sua individualidade, deixa de se ver como cidadão e, de alguma forma ainda se sentir parte integrante da vida extramuros da prisão? Buscar resposta para o questionamento é um dos principais objetivos desta série de reportagem iniciada hoje.
A intenção é avaliar a contribuição do IPPS para o regime prisional do Estado, contar sua história, discutir se o motim de 20 anos atrás modificou em algo a estrutura desse sistema onde o presídio está inserido.
Do futuro do IPPS, já sabemos. Embora sem data certa para ocorrer, será implodido ainda este ano. De como é hoje o cárcere no Ceará, também temos ciência. O que vai permanecer dele no amanhã na área penitenciaria do Estado é o que se pretende discutir. Uma tarefa nada fácil desde o começo.
Os mesmos sete meses de desativação do IPPS foi o tempo levado pelo jornal para conseguir fazer a viagem de volta àquele que já foi o maior presídio do Estado. Além da Secretaria de Justiça (Sejus), tentamos outros meios, como a Defensoria Pública e Pastoral Carcerária. Uma autorização assinada pela juíza corregedora dos Presídios e Estabelecimentos Penitenciários da Comarca de Fortaleza, Luciana Teixeira de Souza, em fevereiro passado, acelerou o processo.
Ressocialização
A Lei de Execução Penal brasileira é clara. O cumprimento da pena deve ir além do caráter meramente punitivo. Eles devem pagar suas dívidas com a sociedade, mas precisam também adquirir condições para se reintegrar a ela. Dos presídios, devem sair aptos para se ressocializarem. Se não sabem quem são, se perdem sua individualidade, os vínculos com a família e as noções de cidadania, torna-se muito mais difícil a ressocialização. É no que acredita a advogada e integrante da Pastoral Carcerária do Ceará, Ruth Leite Vieira.
Políticas
Para ela, no Ceará, o sistema prisional carece de políticas de Estado, não de governo, para que tenham continuidade. Ruth alerta para uma necessidade importante. De acordo com ela, os direitos dos presos, a humanidade e qualidade do sistema prisional devem sempre ultrapassar os interesses da gestão. Enquanto isso não ocorrer, defende, os projetos serão descontínuos, a atenção a este público alvo, feita de maneira precária.
Segundo Ruth, o regime implementado no IPPS não dista muito da situação existente nas demais unidades prisionais. A diferença está no novo. Todas as vezes em que um presídio ou uma cadeia pública são inaugurados, trazem modificações para o sistema. Com o tempo, entretanto, adianta a advogada, o modelo acaba entrando no mesmo processo de degradação. "Quando o IPPS foi criado, era uma referência. Ao ser desativado, estava em condições completamente inadequadas", lembra.
A questão não é só estrutural. Ruth lamenta o fato de pertences dos detentos ainda estarem nos corredores e celas do presídio. Todos deveriam ter sido entregues aos familiares ou então, acredita ela, a condução da transferência poderia ter sido de maneira diferente, com conversas anteriores com os detentos. A advogada acredita ser pior do que álbuns de famílias e objetos de uso pessoal soltos pelo chão, é o recomeço dos transferidos nas outras unidades, onde há uma dinâmica própria. Eles tiveram de conquistar seus espaços. Depois, ao deixarem o IPPS, perderam o direito ao banho sol. Apesar da precariedade do local, este direito ainda existia lá.
Erilene Firmino
Chefe de reportagem

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