sexta-feira, março 29, 2013

No meio de Crateús, uma coluna


Quem ama o feio, bonito lhe parece.                                
                                                                           Lourival Veras


Num certo dia dos idos de mil novecentos e sessenta e muitos, imagino que numa tarde modorrenta, dessas de calor escorrendo pelo espinhaço, nada com que ocupar o quengo, ajuntaram-se um punhado de homens de bem para pensar. E concluíram: a solução é construir, ali com frente ao paço municipal, uma coluna da hora! 

Dou por vista a alegria que foi! Devem ter dado vivas, tapinhas nas costas, discursos esfuziantes. E meteram mãos à obra. 

Veja bem, o tempo era outro. Não tinha esse negócio de ficar elaborando projetos, especulando viabilidade, fazendo estudo disso e daquilo, correndo a Brasília. Negativo! Aqueles eram homens remanescentes de castas medievais, traziam no sangue e na carne o destemor de batalhas terríveis travadas contra dragões que faziam de tudo para abocanhar o amado sol do dia seguinte. Nada era tão difícil que não merecesse ser tentado. Assim, quando muito, dizia-se: fulano, tu cuida disso; sicrano, daquilo. E pronto. 

Ligeiro desenharam a bicha: uma coluna lisa e reta, céu acima, encimada por um relógio presente em suas quatro faces; no pé, um palanque permanente às manifestações cívicas e políticas. Além de tudo, e principalmente, cada lateral estaria coberta, de cima até embaixo, por placas luminosas de lojas, mercados e armazéns. Uma lindeza! 

Tijolo por tijolo num desenho lógico, um dia acordamos pelo soar das horas tomando a cidade. A cada hora os seus badalos. Uma admiração. Teve quem dissesse que aquilo era o progresso enfim alcançando Crateús. Estávamos irremediavelmente condenados ao futuro – fosse o que diabo fosse que significasse isso. 

Lembro-me de eu menino, interrompido em minhas obrigações de comprar alguma coisa com urgência, parado em frente à televisão pública, encravada na parede da coluna, "perdido no espaço" juntamente com o Dr. Smith e a família Robinson, ou envolvido em tiroteios ferozes ao lado de Bat Masterson. Ê tempo! 

Mas desde então já se vão quase 50 anos e o velho relógio suíço há muito silenciou. Na verdade, pararam-no. Não era pra menos, começou a tocar três da tarde ainda antes das dez; meio-dia passou a confundir com oito da noite. Ainda lhe acudiram os préstimos do Sr. José Maria, mas não teve jeito. Quedou biruta de vez. 

E passaram a inventar modificações na velha torre. Um dia arrancaram-lhe fora todas as placas de luz – uma feiura! A televisão? Vixe, nem lembro mais quando tamparam seu lugar. Tiraram tijolo por tijolo a pracinha que a circundava, rebolaram fora os banquinhos de cimento, esqueceram seu palanque – ninguém mais ali se apresenta. 

E muitos, olhando-a, exclamam, assombrados: horror! Para sua pele descascada, manchada, esburacada: horror! Para seus ponteiros tristes e pedintes: horror! Para seu pé titubeante, fincado entre aqui e um passado do qual ninguém mais recorda: absurdo! A coitada às vezes lembra um itinerante que se esqueceu de sumir no horizonte. 

Vejam ela lá, fincada no meio de Crateús, atrapalhando o trânsito e o público. Tirando o sossego de quem, diferentemente daqueles homens que a construíram, tem preguiça mental de imaginar o antigo incorporado ao futuro. E dizem: que feia! que deselegante! quanta falta de graça! um desperdício de espaço! 

Pra mim, não! Essa Coluna da Hora é minha Ouro Preto, minha pirâmide de Gizé, minha Acrópole. É um bastião de minhas memórias. Fosse eu um pouco arremediado, um pouquinho de dinheiro eu tivesse, comprava pra ela um colar de pérolas, um anel de ouro somente para enfeitá-la. 

Mais tarde, acho que vou aperrear alguém para que lhe dê umas boas demãos de tinta. 

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